Tela: Artista Salvador Dali

La main les remords de conscience-1930

 

 

 

 


 

Vera Pessoa

Viver é Jesus Cristo, morrer é lucro.
Apóstolo Paulo

Quanto ao homem, os seus dias são como a erva;
como a flor do campo, assim ele floresce.
Salmo 103:15

Existir é coexistir.
Gabriel Marcel

 

RESUMO

Neste texto, refletimos “en passant” sobre o Existencialismo na Filosofia. Embora represente uma corrente específica do pensamento moderno, o existencialismo não deixa de ser uma tendência que se faz sentir ao longo de toda a história da filosofia. Os temas de reflexão do existencialista giram em torno do homem e da realidade humana. Heidegger, ao que nos parece, é o filósofo mais alheio a essa perspectiva, pois, para ele, o problema fundamental da filosofia é o ontológico: o problema do ser. Assim, o problema do homem fica subordinado a esse problema. Sejam quais forem suas posições particulares, todos os existencialistas afirmam, porém, que a escolha entre as diferentes possibilidades implica riscos, renúncia e limitação, salvo o francês Gabriel Marcel, principal representante do existencialismo cristão, que pensa ser possível a transcendência do homem mediante seu encontro com Deus na fé. O distanciamento que temos à nossa realidade com tudo que é dor, com tudo que é referente à morte, deixa claro o quanto nos defendemos da nossa existência e a negamos. A angústia e a morte vão esbarrar-se exatamente no projeto sociocultural moderno de controle, de consumo, de gozo de uma fictícia e temporária felicidade. Ainda assim, cremos que não devemos perder de vista que a finitude do homem é um fenômeno cujo significado tem repercussões nas dimensões familiares e em toda a sociedade. Logo, seria relevante a introdução de debate da morte em termos críticos e racionais em todas as ramas sociais.

Palavras-Chave: Morte. Existencialismo. Angústia.

 

ABSTRACT

In this essay we reflect “en passant” on Existentialism in Philosophy. Although it represents a specific current of modern thinking, existentialism is still a trend that is felt throughout philosophy history. The reflection topics of the existentialist revolve around man and human reality. Heidegger, as it seems to us, is the most oblivious philosopher of this perspective, because, to him, the fundamental problem of philosophy is ontological: the problem of being. Thus, the problem of man is subject to this problem. Whatever his particular positions are, all existentialists claim that the choice among different possibilities involves risks, resignations and limitations, except from the Frenchman Gabriel Marcel, the main representative of the Christian existentialism, who thinks man's transcendence is possible when encountering God in faith. The distance we have of our reality with all the pain, with everything that is related to death, makes it clear how we defend our existence and deny it. The anguish and death will bump exactly in modern sociocultural project of control, consumption and enjoyment of a fictitious temporary happiness. Still, we believe that we should not lose sight that man's finitude is a phenomenon whose significance has repercussions on family dimensions and across society. Therefore, it would be relevant to introduce a discussion on death in critical and rational terms in all social branches.

KEYWORDS: Death. Existentialism. Anguish.

 

PRELÚDIO

Refletir acerca do que nos propõem os grandes pensadores existencialistas e meditar sobre a finitude física ou não da pessoa humana tem, marcadamente, nos motivado, a partir de 1979, e nos empurrado a leituras e a rascunhos sobre essas indefinidas questões universais à luz dos questionáveis conhecimentos puramente humanos.

No presente momento - 2014 - sentimos adequado abordarmos o tema existencial “ser-para-a morte” na visão de Heidegger, ainda que en passant, devido ao instante que vivemos as separações do outro. Assim, apresentaremos algumas de nossas anotações sobre a morte, segundo o filósofo alemão Martin Heidegger (Meßkirch, 26 de setembro de 1889 - Friburgo em Brisgóvia, 26 de maio de 1976), focando no ser-para-a morte, tema desenvolvido na sua obra inacabada Ser e Tempo, de 1927; objetivando criar a possibilidade de reflexão sobre o sentido da vida do homem contemporâneo ocidental, cuja existência superficial, genericamente falando, o afasta de sua dimensão mais originária: a temporalidade - horizonte aberto de toda compreensão de mundo, de vida, do sentido da angústia e da realização. Isso o empurra, quiçá, a um “pensar tranquilo” sobre as suas próprias finitudes e um encontro luminoso com o Indefinido e com o Indiscutível: Deus.

Dentro de sua análise existencial, Heidegger fez uso da angústia e do ser-para-a-morte para perturbar a lógica do impessoal que comanda a vida cotidiana. Ele acreditava que o homem, ao tomar consciência da sua condição de ser finito, poderia apropriar-se de suas possibilidades, escolher seu si mesmo mais próprio e assumir autenticamente a sua maneira de viver como ser-no-mundo. Ter consciência de nossa condição de sermos-para-a-morte e do nosso encontro com o Indescritível não significa vivermos temerosos, assombrados. Significa sim uma abertura ao que a morte nos revela de mais essencial: nossa própria vida e nosso modo de viver nessa terra.

 

A IDÉIA DA MORTE

Parece-nos que de todas as experiências humanas nenhuma nos traz mais implicação e inquietude do que a ideia da morte e o medo que ela nos inspira. Nem as religiões e as doutrinas filosóficas, e nem mesmo a ciência, são capazes de amainar a angústia que a consciência da finitude promove-nos. Por isso, nós, os ocidentais contemporâneos, a negamos e a recusamos das mais variadas maneiras - ansiosos por ideias vitais que resolvam nossas tensões e que nos deem a falsa sensação de a estarmos domando.

Contudo, negar essa realidade ou fugir de qualquer reflexão sobre a morte não a evita como vemos ao nosso redor e bem nos explanou Ariès: “não é fácil lidar com a morte, mas ela espera por todos nós... Deixar de pensar na morte não a retarda ou evita. Pensar na morte pode nos ajudar a aceitá-la e a perceber que ela é uma experiência tão importante e valiosa quanto qualquer outra” (ARIÈS, 2003, p. 20).

Precisamos entender, dessa forma, que a morte não é um fracasso. Temos esse sentimento devido à ideia de que a vida é sempre inacabada. Contudo, é uma realidade que força o homem a tomar consciência de seus valores mais profundos e a se posicionar diante da vida (HENNEZEL; LELOUP, 1999). Assim, Angerami (2007) concluiu que “a morte é, muitas vezes, um processo vital que determina inclusive o modo de viver e a própria condição da vida”. De onde se conclui que ela não deve ser pensada como uma inimiga a ser derrotada.
Sentimento que pode, segundo Rubem Alves (1992), levar-nos a tornarmo-nos surdos às lições que a morte pode ensinar-nos e sermos tolos na arte de viver. Rubem Alves entende que deveríamos tornar-nos discípulos da morte e não inimigos. Em 2000, encontramos Sponville afirmando que “ninguém jamais fracassou em morrer, mas em viver”. Ele nos lembra sobre a impossibilidade de vivermos felizes “sem aceitar a própria trama de nossa existência que é o tempo que passa e a vida que se desfaz”.

 

SER PARA A MORTE

Segundo Safranski, nós não apenas somos, mas percebemos que somos e que estamos entregues a nós mesmos. Ele completa dizendo que somos aquilo que nos tornamos ao longo do tempo - horizonte aberto – como ser-no-mundo e ser-com-outros.

Quando Heidegger convida-nos a olhar para o tempo como um horizonte aberto, ele nos faz perceber que, entre muitas possibilidades que nos aguarda, uma ocorrerá com toda certeza: a possibilidade da impossibilidade, o grande passar, a morte. E, nesse sentido, ele relaciona morte/tempo: “O Dasein sabe de sua morte [...] O Dasein sente que vai passar” para lembrar-nos que, em cada vivência aqui e agora, já percebemos esse passar e que vivenciamos o tempo em nós mesmos como esse passar na maneira como a vida se cumpre (SAFRANSKI, 2005, p. 172).

Nessa relação morte/tempo, Abbagnano (2006) afirma que o homem é definido pelo tempo, é a possibilidade de que cada uma das possibilidades do homem se perca; e, a morte é a possibilidade da impossibilidade, por ser ela o que finda todas as outras. Nesse sentido, ele entende que a temporalidade (relação morte/tempo) determina essencialmente a natureza do homem enquanto indeterminação e problematicidade, porque ela “não é uma circunstância acidental da existência do homem, um estado provisório de seu ser, ao qual se pudesse conceber que ele fosse subtraído”.

A temporalidade define a natureza, a constituição última do homem, porque é a própria problematicidade de seu ser. “Tudo que o homem é, ele o é por força de sua natureza problemática, que é a própria temporalidade”. Isso faz mesmo todo sentido se considerarmos que, em nosso cotidiano, vivemos meio escravizados pelo tempo. Ele passa sem descanso e sem interrupção, e sempre apontando para um futuro que poderá ou não acontecer, uma vez que na condição de “ser-aí” a qualquer momento posso já não mais existir.

Para Heidegger, a morte como possibilidade certa não é um acontecimento no tempo, mas o fim do tempo. E, essa certeza não pode ser experimentada diretamente já que para isso é preciso morrer. Assim, como fenômeno cotidiano, a morte é vivida sempre com a morte do outro. No entanto, a minha morte e a morte do outro revela o caráter determinante e constituinte do Dasein como ser-para-a-morte. E ser-para-a-morte revela o não-ser como essência da existência, revela a situação de inconclusão, de pendência em que o homem se encontra e por isso mesmo sempre passível de realização.

Onticamente falando, o Dasein só se completa, só atinge a totalidade com sua morte, quando deixa de ser ente, ou seja, quando deixa de ser-no-mundo. E é por isso que a morte representa, no existencialismo, a última experiência, a que dará completude ao indivíduo. Dastur (2002) completa dizendo que, na análise heideggeriana, a morte está intimamente ligada ao fenômeno da existência e não deve mais ser pensada como algo externo que determinaria o fim da existência, mas sim como o que constitui essencialmente a relação do Dasein com seu próprio existir, que ele chama de “ex-sistência”.

A existência é, por sua própria natureza, nascimento e morte. O ex-sistir do homem tem seu sentido ontológico na possibilidade inalienável de ser-para-a-morte, ou seja, “para morrer basta estar vivo”. Nesse sentido, Michellazo confirma que a morte é uma manifestação da própria vida, ou seja, uma não pode ser sem a outra, porque, como Heidegger esclareceu, “tudo o que começa a viver já começa também a morrer, a caminhar para a morte” (HEIDEGGER, 1978, p. 156).

 

ANGÚSTIA

Sêneca já professava que “quem teme a morte, nunca agirá conforme sua dignidade”, pois apenas aquele consciente de ter sua sorte decidida desde o momento de sua concepção “viverá em conformidade com tal projeto e, ao mesmo tempo, irá cortejá-lo, com pleno vigor da alma”, e que a desarmonia entre o comportamento social e a autenticidade da pessoa é fonte de grande inquietude (SÊNECA, 2009). É a partir dessa inquietude que, em Heidegger, chama-se angústia o que o homem poderá vir a descobrir e ser capaz de libertar-se do mundo - mundo alienante e de ritmo alucinante, ditado pelo dia-a-dia para assumir as rédeas do seu destino e dar à sua existência o sentido que lhe é o mais próprio.

Contudo, em geral, o Dasein não tem um saber expresso sobre sua condição de estar entregue à própria morte, porque está absorvido no mundo de suas ocupações, fugindo da angústia, ontologicamente considerada, que nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo e como ser-para-a-morte. De fato, muitos homens fogem da angústia provocada pela consciência da morte e evitam refletir sobre suas implicações.

Outros poucos meditam sobre a morte e sobre a abertura que ela proporciona para tornar o Dasein aquilo que ele realmente é: autêntico e singular. Conscientizar-se da realidade da morte e assumi-la como minha obriga-me, por meio da angústia existencial, a encarar o meu ser como um ser de projeto que não dispensa a morte, mas que faz dela a mola propulsora de minhas atitudes e projetos existenciais. Dessa forma é possível afirmar que a liberdade para a morte e que a angústia é o que libera o homem da banalidade cotidiana para a possibilidade de uma existência autêntica, na qual a morte é doadora de sentido das outras possibilidades, por ser ela o que confronta o ser humano com seu mais genuíno modo de ser. É por essa razão que Heidegger afirmou em Ser e Tempo que “a angústia singulariza a pré-sença em seu próprio ser-no-mundo que, na compreensão, se projeta essencialmente para possibilidades” (HEIDEGGER, 1993, p. 251).

Nesse caso, a tarefa do homem enquanto se “está sobre o próprio ser”, enquanto ser-aí, é, para Nogueira (2007), apropriar-se de si mesmo - do seu ser -, apropriando-se, assim, de suas possibilidades de ser. Entre as possibilidades de ser, há duas radicais pelas quais o homem decide seu destino: a autenticidade e a inautenticidade. São os modos fundamentais de existir que dão forma a todos os outros no espaço-tempo da vida humana. É pela autenticidade que o Dasein é capaz de encontrar-se plenamente com o seu ser, quando é remetido, pela voz da consciência, ao sentido da morte que nos mostra o nada de todo o projeto. A existência autêntica é aceitação da finitude o que significa ter “a coragem da angústia diante da morte”.  Contudo, a massificação do mundo contemporâneo induz-nos ao consumismo desenfreado, nos dita valores, define nossas necessidades, rotula-nos, leva-nos a perder-nos em um cotidiano frenético e a vivermos de maneiras alienadas. Esquecidos de nós mesmos e dissolvidos no modo de ser dos outros, de tal maneira que a singularidade e a diferença perdem-se no “todo mundo” que na verdade não é ninguém.

A esse modo cotidiano de ser Heidegger chama de “impessoal”, pois falamos diariamente como “a gente” fala, comportamo-nos como o outro espera que nos comportemos, e “nos relacionamos com os outros, de modo a não sermos nós mesmos, mas ‘a gente’”(MICHELAZZO, 1999, p. 130).

Bauman (2009) menciona em A Arte da Vida que Max Frisch, o grande romancista suíço do pós-guerra que sofreu influência do existencialismo e de Brecht, escreveu em seu diário que apenas conseguiremos resistir à corrente e fugir das garras imobilizantes do impessoal se rejeitarmos e repelirmos resolutamente as definições e as identidades impostas ou insinuadas por outros para desenvolvermos a arte de “ser você mesmo”, que é reconhecidamente a mais exigente de todas. Desenvolver essa arte depende, segundo Heidegger, de conscientizarmos de nossa condição humana de sermos-para-a-morte, pois só então poderemos apropriar-nos de nossa existência e de nossas mais próprias possibilidades. 

Na forma inautêntica de existir, o Dasein envolve-se nas ocupações diárias e é absorvido pelas preocupações de modo a se deixar levar pela vida vivida superficialmente em vez de tomar-se à sua própria responsabilidade e realizar-se verdadeiramente como ser-no-mundo. São muitas as ocupações e as distrações que encobrem o fato de o homem fugir da sua condição de ser-no-mundo - de não entregar-se a si mesmo -, dando-lhe a ilusão de que o mundo, como verdadeiro sujeito do homem, é que determina sua existência e destino - vejamos, por exemplo, a televisão e as redes sociais.

Nesse caso, o homem pode, inclusive, crer que “tudo no mundo se acomoda às suas necessidades, que até mesmo a constituição de mundo está ordenada a fim de lhe possibilitar a vida e a felicidade, e que, por isso, nada há no mundo que não se possa medir pelo metro de sua utilidade e critério” (ABBAGNANO, 2006, p. 144). Ora, com esse pensamento, o mundo é mesmo um perigo, já que o homem nega-se a reconhecer que o próprio caminho do mundo depende dele e não do próprio mundo. Olhemos os nossos idosos, olhemos os nossos jovens e olhemos as nossas crianças.

Abbagnano (2006) lembra-nos sobre a impossibilidade de antepor o mundo à existência e renunciar a ele a iniciativa e a responsabilidade da própria existência, pois “se não tomo sobre mim a responsabilidade da decisão, perco-me a mim mesmo e à realidade do mundo”. Perder-se é naturalmente a recusa de assumir-se a si mesmo, é a fuga diante da finitude radical da qual nenhuma existência pode desfazer-se. Esse “perder-se” é próprio da condição inautêntica da existência - “expressa o esforço do Dasein na sua busca da familiaridade para escapar do confronto com o ser” (MICHELAZZO, 2006, p. 130).

Aqui, confrontar-se significa dar-se conta do paradoxo de que o que é mais pertinente à sua essência como existência é estar aberto à impossibilidade da própria existência. E mesmo a busca pela familiaridade, no sentido do previamente trilhado, também não é assim tão seguro e tranquilo, porque, no impessoal, também experimentamos o sofrimento: tanto o sofrimento próprio das identificações estabelecidas, como o sofrimento gerado pelas “necessidades” de consumo e de constantes satisfações, bem como do medo de não as alcançarmos.

Para Rodrigues (2008, p. 196): “Será sobre esse território de familiaridade, povoado de incerteza e ‘angústia’, que a experiência da estranheza se dará, marcando a provisoriedade de todas as coisas, estabelecendo novas referências, abrindo o terreno para outras possibilidades de sentido”.

A angústia advinda dessa constatação é um estado de ânimo que rompe a existência para o mundo, que tira o Dasein do cotidiano nivelador e rasteiro e o abre para aquilo que ele pode unicamente ser a partir de si mesmo. Ressaltamos que é na abertura privilegiada dessa vivência da angústia que nos angustiamos com a falta de sentido no mundo, que não mais pode nos sustentar. É por meio dela que nos remetemos ao fato de estarmos desde sempre lançados no mundo por nossa própria conta. Não é o outro a nossa conta! Ao nos apontar para o que de fato somos, ela naturalmente desconstrói as nossas certezas, as nossas prioridades e referências, e, então, tudo que consideramos importante é convocado a uma ressignificação, ao autêntico religare.

Assim, quando o homem defronta-se com a morte, ou porque perdeu um ente amado, ou porque se descobriu com uma doença grave, ou ainda porque assistiu pela televisão, ou leu no jornal, espantado e comovido, a um desastre natural ou a uma tragédia provocada pelo homem, ele naturalmente se angustia. É em consequência dessa angústia, devidamente assumida, que ele será capaz de promover mudanças significativas em sua vida, de “abraçar a sua responsabilidade humana fundamental, de construir uma autêntica vida de compromisso, conectividade, significação e satisfação consigo mesmo” (YALOM, 2008, p. 39). O que significa que o homem está essencialmente determinado tanto pela finitude como pela angústia, pois ambas levam o homem a transcender a si mesmo como ser-no-mundo, e a buscar pela fé a sua essência no Indescritível e Indiscutível. Sponville (2000) considera a angústia o que há de mais humano, e que apenas a morte liberta-nos dela, mas sem jamais contestá-la, porque sua verdade revela que “somos fracos no mundo e mortais na vida”.

Um importante personagem da literatura russa (que jamais fizera o que de fato queria, mas sempre o que esperavam que ele fizesse), Ivan Ilitch, de Tolstói, é um bom exemplo de quem se tornou consciente da vida e da morte quando se descobriu com câncer e na iminência de morrer. Foi nessas circunstâncias que ele pode questionar-se sobre a morte, rememorar sua vida e avaliar o que foi vivido e o que deixou de viver: “E na opinião dos outros eu estava o tempo todo subindo e todo o tempo minha vida deslizava sob meus pés. E agora acabou tudo e é hora de morrer (...). Talvez eu não tenha vivido como deveria (...). Mas, como se eu sempre fiz o que devia fazer?” (TOLSTOI, 2008, p. 89apud SPONVILLE, 2000).

Mesmo sentindo terríveis dores e com a morte se aproximando, Ivan Ilitch pôde passar por uma considerável mudança, descobrindo a compaixão, a ternura e a empatia que, até então, lhe eram estranhas. Sua história ilustra a passagem de uma vida morta, esvaziada de sentido, para uma morte que lhe ensina sobre a vida. Podemos até pensar que Sponville inspirou-se em Ivan Ilitch quando escreveu: “Quantas vidas, de tanto querer evitá-la, condenam-se assim inteirinhas à morte?” (SPONVILLE, 2000, p. 67.

E como Ivan Ilitch, muitas outras pessoas que se confrontam com uma situação difícil na vida, nesse caso estar diante da iminência de sua morte, conseguem, após o choque inicial, ultrapassar o desespero e ir ao encontro do que há de mais íntimo em seu ser, ao que lhes é mais essencial para dar um significado próprio ao restante de suas vidas. Tal ressignificação atinge não somente aquele que confronta diretamente a circunstância difícil, mas a todos que lhe são próximos. Dessa forma, a pessoa que vive o “absurdo” de perder alguém que ama, também pode ser chamado a repensar sua vida, seus valores e suas escolhas. Porque é na obscuridade em que se encontra, no vazio e na dor, que a angústia heideggeriana o conduzirá a refletir sobre a existência, ao reencontro consigo mesmo, ao fazer e ser singular; enfim, o conduzirá a realizar seu projeto de vida autêntico.

É facilmente observável a diferença entre os discursos daqueles que já vivenciaram o confronto essencial com a finitude com os daqueles que jamais sentiram o chão se abrir sob seus pés. Esses têm um arsenal teórico e racional para explicar o que não tem explicação e para procurar saídas, culpados e para determinar até quando é permitido sofrer. De tanto fugir da morte e negá-la perdem até a capacidade de solidarizar-se com ela para mantê-la distante e não ser tocado por ela. Esse modo impróprio de compreensão é que facilmente os conduzem de volta à multidão, à impessoalidade, sem de fato terem sido tocados na profundidade da vivência que os instiga e intima a refletir e ressignificar a própria existência.

 

EN PASSANT: ANGÚSTIA E MORTE

Segundo o exposto, com base no Existencialismo heideggeriano, necessário se faz olharmos de frente à nossa realidade de morte, o que nos remete à nossa condição irremediável de estarmos lançados a um futuro que pode ser limitado. Entretanto, isso é o que nos permite ter mais consciência da nossa vida, do quanto podemos usufruí-las e de como queremos vivê-las, pois, quando nos damos conta da simplicidade e da fragilidade que pode ser a vida, é que nos perguntamos sobre as coisas que realmente importam.

É a partir desse confronto que poderemos modificar nossos valores, ressignificar nossas vidas, refletindo sobre o que de fato é essencial como seres-no-mundo. Afinal, esse nada existencial que o ser-para-a-morte revela-nos é que nos garante a possibilidade sublime de refazer pensamentos, comportamentos e caminhos. Nesse momento, remetemo-nos à afirmação: “Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte”.

A fragilidade da vida vivida; a certeza infalível da morte; as quedas sem levantes nas relações humanas; o medo de se amar, amar o outro e ser amado; o trêmulo medo da solidão; o ameaçador medo do medo; a vacuidade existencial; a eterna impermanência de tudo nos dias de hoje etc., são verdades e realidades puras dessa vida - havendo outras e solitárias sempre verdades! Mortais sempre! Pungentes sempre! Tão frágeis, tão fracas e tão expostas sempre!

O distanciamento que temos à nossa realidade com tudo que é dor, com tudo que é referente à morte, deixa claro o quanto nos defendemos da nossa existência e a negamos. A angústia e a morte vão esbarrar-se exatamente no projeto sociocultural moderno de controle, de consumo, de gozo de uma fictícia e temporária felicidade. Projeto que busca a previsibilidade e a imortalidade a todo custo.  Ao nos posicionarmos assim, perdemos a oportunidade de refletir sobre o rumo que damos à nossa vida, à vida do outro e à do mundo. Ao mesmo tempo em que negamos nossa condição humana de sermos finitos, vivemos, literalmente, a cultura do carpe diem - o “aproveite o momento”, o “aqui e agora”-, buscamos, delirantemente, apenas o “ter” e o “prazer”. Temos visto que essa busca incessante de gratificação leva-nos a estabelecer relações hedonistas, liquefeitas e descompromissadas com nós mesmos, com tudo e com todos à nossa volta, em uma completa banalização do ser e da vida.

Procurarmos ter a consciência de sermos-para-a-morte é o que realmente nos empurra a sermos singulares, levando-nos a abrir-nos à possibilidade de uma existência autêntica e à construção de mundos decentes e saudáveis. Viver de um modo próprio e autêntico nada mais é do que nos apropriarmos de nossa existência utilizando nossa liberdade consciente para fazermos escolhas conscientes e responsáveis que englobem o outro e o mundo. É importante que, sobre as nossas escolhas, questionemos, a todo o momento, se elas provêm de uma opção pessoal ou se estamos sendo induzidos a elas para evitarmos ser levados pela multidão e pelo modo impessoal. Contudo, escolher viver de um modo “mais” próprio – não psicoticamente à margem –, parece-nos que somos levados na contramão em relação à realidade cunhada na nossa sociedade consumista, libertina, vaidosa, superficial e que procura ter valores enviesados. Assim, para as pessoas, ser normal é ser igual a “todo mundo”, é estar no mundo da mesma maneira que todos.

Parece-nos que, mesmo ao apropriarmo-nos da nossa existência e tornamo-nos únicos, singulares mesmo nas simplicidades, ainda assim somos novamente tentados a ceder à força da correnteza, à alienação, ao esquecimento de nós mesmos, a abrirmos mão de nossos projetos existenciais. Isso porque, na condição de ser-com-os-outros, que é ser um ser social, nós, humanos complexos, limitados e falíveis, não permanecemos o tempo todo em um mesmo modo de ser. Por isso mesmo deveríamos ocupar-nos em efetivar nosso projeto existencial, não apenas quando a morte impõe-se a nós, mas continuamente e de forma compromissada, pois o fato dela ser possível a qualquer momento coloca-nos na condição de estarmos sempre à sua disposição e à sua iminência.

Será possível, por meio do pensamento heideggeriano, colocarmo-nos diante de Deus, de nós mesmos e do outro, nos percebendo como um ser-para-a-morte, reescrevendo a nossa história e atribuirmos um sentido próprio e genuíno à nossa existência? “Nada está adquirido nunca, nada está prometido nunca, senão a morte. Por isso só se pode escapar da angústia aceitando tudo o que ela percebe, que ela recusa e que a transforma. Mas o quê? A fragilidade de viver; a certeza de morrer; as quedas no casamento, no estudo, nas finanças e no amor;  o pavor de amar e ser amado; a solidão; a vacuidade; a eterna impermanência de tudo. Essa é a vida mesma, e não há outra, solitária sempre! Mortal sempre! Pungente sempre e tão frágil, tão fraca e tão exposta sempre!

Ainda que “en passant”, como temos vindo até aqui, resgatemos um dos pensamentos sobre a morte no Existencialismo filosófico sob a ótica do filósofo cristão Gabriel Marcel (7 de dezembro de 1889, Paris – 8 de outubro de 1973, Paris).

●  Deus

O homem que vive na esfera do Problema e do Ter só possui opiniões mutáveis. Aquele, porém, que alcançou a região do Mistério do Ser conseguiu obter a firmeza inabalável da Fé. “Toda fé autêntica está enraizada no Ser e no Mistério” (GIORDANI, 1976, p. 126). O indivíduo realiza-se como indivíduo na medida em que afirma a transcendência de Deus e sua própria condição de criatura de Deus. A fé converte-se no ato ontológico mais importante e mais criador. A Fé implica em testemunho contínuo. Pelo testemunho a pessoa prende-se a si mesma com toda a liberdade. Não há problema de Deus (expressão rejeitada por Marcel como sacrílega): o que implicaria em tratar-se de Deus como ausente, como puro objeto. Não falamos de Deus, mas com Ele. A união com Deus é a santidade. Deus é presença absoluta: “Deus só me pode ser dado como presença absoluta na adoração; todo o conceito que formo d’Ele é só uma expressão abstrata, uma intelectualização desta presença” (GIORDANI, 1976, p. 126-127). O Deus do filósofo Gabriel Marcel não é nem um objeto suscetível de demonstração objetiva (racionalismo) nem uma mera função (subjetivismo), mas “o Indemonstrável Absoluto”.  O filósofo Marcel registrou que “desde que se fala de Deus, não é mais de Deus que se fala” (“Dès qu’on parle de Dieu, ce n’est plus de Dieu qu’on parle”) (GIORDANI, 1976, p. 130).

Para nossa dor, vemos que, ainda na nossa época moderna, a morte, mesmo para os cristãos, apresenta-se como uma insegurança inexorável. Não é de se admirar a existência de pessoas que queiram negá-la, de certo modo, ou em termos menos radicais, mantê-la distante de seus pensamentos.

 

REFERÊNCIAS

 

ABBAGNANO, Nicola.  Introdução ao Existencialismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

 

ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte. São Paulo: Paulus, 1992.

 

ANGERAMI, Valdemar Augusto. Psicoterapia existencial. São Paulo: Thomson Learning Brasil, 2007.

 

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

 

BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

 

DASTUR, Françoise. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

 

GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao Existencialismo. Rio de janeiro: Freitas Bastos, 1976.

 

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

 

______. Ser e Tempo. Volume I e II. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

 

HENNEZEL, Marie; LELOUP, Jean-Yves. A arte de morrer: traduções religiosas e espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

 

MARCEL, Gabriel. El Mistério del Ser. Buenos Aires: Sudamericana, 1953.

 

MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade – Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999.

 

MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade – Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP; Annablume, 1999.

NOGUEIRA, João Carlos. A Arte de Morrer – Visões Plurais. Bragança Paulista, SP: Comenius, 2007.

 

RODRIGUES, Tavares Rodrigues. Interpretações fenomenológico-existenciais para o sofrimento psíquico na atualidade. Rio de Janeiro: GdN, 2008.

 

SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: Um mestre da Alemanha. São Paulo: Geração Editorial, 2005.

 

SÊNECA. Da tranquilidade da alma. Tradução de Lúcia Rebello e Itanajara Neves. São Paulo: L&PM, 2009. (Coleção L&PM Pocket).

 

SPONVILLE, André Comte. Bom dia angústia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

YALOM, Irvin D. De frente para o sol: como superar o terror da morte. Tradução de Daniel Lembo Schiller. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

 

 

Escrito em Botucatu-São Paulo, 1983.
Reescrito em São Paulo, 2.VIII.2014.

 

 

 

 

 

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